Noção de Cibercultura em Pierre Lévy e três exemplos significativos

A emergência de um conceito

Cibercultura resulta da junção de duas palavras: ciber+cultura. Ciber provém de cibernética (grego) que significa originariamente a ciência de governar, mais atentamente, de acordo com a Wikipédia, o “estudo científico de como humanos, animais e máquinas controlam e se comunicam”. O elemento ciber (cyber do inglês cybernetics) surge ainda referenciado como um prefixo, e/ou diminutivo associado a Internet e a realidade virtual. Quanto à palavra cultura, das diversas definições possíveis e focos que possui, consoante as abordagens disciplinares a que é sujeita, socorro-me da noção que discuto com os meus alunos na disciplina que leciono, História da Cultura e das Artes: conjunto de modelos e padrões com os quais uma determinada sociedade encontra e estabelece o seu modelo de vida, incluindo os seus costumes, tradições, crenças, normas e valores, sendo a ideia de cultura transportadora de uma atitude dinâmica que o indivíduo desenvolve em si e no seu meio, operando uma mudança.

Daquelas duas palavras é formado o substantivo cibercultura proposto por Pierre Lévy, historiador, sociólogo, filósofo e professor universitário, na sua obra Cyberculture, editada em 1997 no âmbito de um relatório encomendado pelo Conselho Europeu sobre as implicações culturais do desenvolvimento das tecnologias digitais de informação e de comunicação. Refira-se que Pierre Lévy é uma referência nas áreas da cibernética, inteligência artificial e tecnologias.

No livro citado, Lévy clarifica claramente o conceito de cibercultura: “(…) conjunto das técnicas (materiais e intelectuais), as práticas, as atitudes, as maneiras de pensar e os valores que se desenvolvem conjuntamente com o ciberespaço.” (Lévy, 2000, p.17), entendendo por ciberespaço “(…) o novo meio de comunicação que surge da interligação mundial dos computadores (…) a infra-estrutura material da comunicação digital, mas também o universo oceânico das  informações que ele alberga, bem como os seres humanos que nele navegam e o alimentam.” (Lévy, 2000, p.17). É a rede, “(…) é o espaço de comunicação aberta pela interligação mundial dos computadores e das memórias informáticas.” (Lévy, 2000, p. 95).

Podemos dizer que ao longo da história da humanidade sempre existiram momentos dinâmicos provocados pelas ruturas que despertaram revoluções. Lévy debruça-se sobre essa longa marcha assente nas interações entre seres humanos e entre estes e a técnica e periodiza-a diacronicamente: civilização de escribas, alfabetizada, tipográfica e o período em que vivemos que é de transição para a civilização algorítmica. Em cada tempo histórico, novas práticas, costumes, atitudes e técnicas surgiram trazendo a mudança.

Vivemos assim, segundo Lévy, na emergência da civilização algorítmica. Nesta surge a cibercultura, associada a novas práticas e costumes que advêm da adoção ou inserção no nosso quotidiano das novas tecnologias suportadas na, da e pela Internet.

Estamos num ponto de viragem na nossa história contemporânea, num tempo de não retorno onde um enorme léxico de novas palavras, ações e comportamentos pautam o modus vivendi de um número substancial e crescente de seres humanos à escala planetária: entrar no chat para falar com amigos mesmo fisicamente perto; dar uma aula por videoconferência porque a escola encerrou, enviar um mail à direção da escola, postar fotografias das últimas férias, ver tutoriais para resolver um exercício, espreitar numa aula uma mensagem colocada numa qualquer rede social… compartilhar, googlar, pesquisar na net, elearning, síncrono e assíncrono, post, blogs, facebook, twitter, whatsapp, youtube, tiktok… este universo de um admirável novo vocabulário constitui parte da cibercultura, envolve-a e dá-lhe sentido.

O motor que a consubstancia é o ciberespaço, a Internet, assente em três características que a enformam na perspetiva de Lévy:

(i) - a lógica da interligação – estar na rede direta ou indiretamente conetado a todos os que também compartilham o mesmo espaço: “Em cibercultura, a ligação é sempre preferível ao isolamento. A ligação é um bem em si mesmo.” (Lévy, 2000, p. 132).

Para Lévy: “O progresso das técnicas de transporte e de comunicação é simultaneamente motor e manifestação desta entrada em contacto generalizada.” (Lévy, 2001, p. 23). A sua análise histórica dá-nos os exemplos marcantes: navegação de longo curso + imprensa; maior segurança das redes viárias + desenvolvimento dos correios; caminho-de-ferro + telégrafo; automóvel + telefone; aviação e exploração espacial + rádio e televisão. E chegamos ao binómio da civilização algorítmica: dispositivos móveis, ligação à Internet + cibercultura. Apesar de podermos situar o ponto de partida da interligação na Idade Moderna, com a expansão europeia e os primórdios da globalização, é no tempo presente que estamos verdadeiramente conectados numa gigantesca sociedade em rede.

(ii) - a formação de comunidades virtuais – assente em grupos de discussão que partilham os mesmos gostos e os mesmos interesses comuns. Existem milhões de comunidades virtuais sobre os mais variados temas. Este intercâmbio da comunicação virtual gera uma memória coletiva que resulta da interação das pessoas. Estes novos laços de sociabilidade não estão assentes em territórios físicos mas em processos de inteligência coletiva.

(iii) - a criação da inteligência coletiva – cada indivíduo que entra na rede transporta a sua cultura e, por exemplo, ao criar um canal com conteúdos para compartilhar, alguém reutilizar acrescenta mais conhecimento. Este termo – consciência coletiva - criado por Lévy refere-se ao somatório das inteligências individuais compartilhadas na sociedade virtual, promovendo a aprendizagem coletiva através da permuta do conhecimento. O projeto Árvores do Conhecimento, desenvolvido por Lévy e Authier, assentava na cartografia dos saberes individuais/grupais enquanto instrumento para a inteligência coletiva na educação e na formação. “A árvore de uma comunidade cresce e transforma-se à medida da evolução das competências da própria comunidade”. (Lévy, 2000, p. 192).

 Em Lévy, a Internet é a ferramenta que contribui para a democratização do saber, é um ganho para os seres humanos no sentido que lhes permite a obtenção de mais conhecimento, de construir mais conhecimento, de partilhar mais conhecimento. O que poderá ser ameaçador para a cartelização cultural, entre outros poderes tradicionalmente dominantes. O que poderá ser perturbador sobre o que fazer com a informação gerada.

A explosão da bomba das telecomunicações mencionada por Einstein ou o segundo dilúvio das informações de Roy Ascot é evidenciado por Lévy (2000, p. 13, 14) na longa citação que a seguir transcrevo:

“As telecomunicações arrastam este novo dilúvio em virtude da característica exponencial, explosiva e caótica do seu crescimento. A quantidade bruta dos dados disponíveis multiplica-se e acelera-se. A densidade das ligações entre as informações aumenta vertiginosamente nos bancos informáticos, os hiper textos e as redes. Os contactos transversais entre os indivíduos proliferam anarquicamente. É a inundação caótica das informações, o fluxo dos dados, as águas tumultuosas e os turbilhões da comunicação, a cacofonia e o psitacismo ensurdecedor dos media, a guerra das imagens. As propagandas e as contrapropagandas, a confusão dos espíritos.”

Deste dilúvio da informação emerge a universalidade, a interconexão generalizada que tudo acolhe, em função das sensibilidades, apetências e posições perante o conhecimento individuais, mas sem totalidade, sem fechamento. Lévy alerta (Lévy, 2000, p.73):

“Mas a cibercultura não é, justamente, a civilização do zapping. Antes de encontrar o que se procura no World Wide Web, é preciso aprender a navegar e familiarizar-se com o assunto. Para nos integrarmos numa comunidade virtual, é preciso conhecer os seus membros, e que eles nos reconheçam como um deles. As obras e os documentos interativos não nos dão geralmente nenhuma informação, nem nos provocam nenhuma emoção imediatamente. Se não lhes fizermos perguntas, se não dispusermos de tempo para os explorar e os compreender eles ficam selados. Passa-se o mesmo com as artes do virtual. Ninguém se escandaliza se for necessário conhecer a vida dos santos cristãos para compreender os frescos religiosos da Idade Média, as especulações esotéricas da Renascença ou os provérbios flamengos para ler as telas de Jérôme Bosch, ou conhecer um mínimo de mitologia para perceber o tema das telas de Rubens.”

A cibercultura precisa de ser ensinada. Nunca se teve tanta informação universal, praticamente gratuita, sendo uma questão central, como transformar a informação em conhecimento? Em conhecimento significativo, criativo e inovador?

 Três exemplos significativos

Dos vários exemplos que poderia apresentar referentes a cibercultura, como as wikis, nomeadamente a Wikipédia, ou diversos  cursos online que se multiplicam aceleradamente na Internet, ou plataformas de criação coletiva musical ou plástica, ou mesmo o modelo de ensino do nosso Mestrado, quero focar três exemplos significativos de cibercultura no contexto da minha profissão docente, de modo a perspetivar como pode esta constituir uma alavanca para a mudança de paradigma pedagógico, ao ir transformando o ensino tradicional, reduzido a um espaço físico com quadro e manual escolar, para um ensino onde a ligação em rede, a partilha e a colaboração coletivas constituam as premissas da cibercultura preconizada por Lévy.

 (i) - Ambiente virtual de aprendizagem: Google Arts&Culture. Site do Google em colaboração com diversos museus mundiais que permite: visitas virtuais gratuitas; interação com obras de arte; imersão, através da realidade virtual, em obras de arte; compartilha e interconexão em redes sociais; ligação ao Google Maps, que possibilita encontrar exposições e museus... Mais do que observar uma determinada pintura no manual escolar, o estudante pode ampliar e atender aos pormenores, observar as camadas de tinta, comparar diversas obras do autor ou de outros no tempo de um clique, visualizar um vídeo… num manancial de informação a servir o conhecimento e a criatividade.

Ganha destaque a simulação aliada à realidade virtal, como modo de conhecimento próprio da cibercultura, como refere Lévy, “(…) A realidade virtual, no sentido mais forte do termo, especifica um tipo de particular de simulação interativa, na qual o explorador tem a sensação física de estar imerso na situação definida por um banco de dados.” (Lévy, 2000, p. 74). Cada vez mais os museus, as exposições e galerias de arte usam a simulação para penetrarmos virtualmente num outro mundo que amplia a imaginação e a criatividade. O universo dos videojogos, além de bastante lucrativo, tem explorado estas potencialidades. “As técnicas de simulação, em particular aquelas que utilizam imagens interativas, não substituem o raciocínio humano mas prolongam e transformam a capacidade da imaginação e do pensamento.” (Lévy, 2000, p. 177).

 (ii) – Plataforma de aprendizagem: Kahoot. É uma poderosa plataforma pois alicerça-se sobre a noção de gaming – jogo individual ou em grupo – sob a forma de um teste de escolha múltipla. Pode assumir uma feição competitiva e ser utilizado no mesmo território físico por todos, ex.: sala de aula, ou em espaços e tempos diferenciados por cada um mediante o link de acesso ao challenge. Permite o compartilhamento gratuito dos recursos produzidos e a sua reutilização sob a forma de novos conteúdos criados por qualquer um: alunos e/ou professores. A gamificação no processo de ensino-aprendizagem tem vindo a ser cada vez mais debatida enquanto processo motivador e desafiante rumo a uma perspetiva de elearning.

 (iii) – Comunidade virtual de aprendizagem: Messenger. Nesta mudança de práticas que também enforma o conceito de cibercultura, quero apresentar o último exemplo significativo associado a uma ferramenta muito utilizada pelos alunos. O Messenger é um dos aplicativos a que os alunos mais recorrem para estarem ligados. A criação de grupos de aprendizagem tem promovido o apoio do trabalho colaborativo, da partilha de informação e da comunicação. “(…) a função principal do ensino já não pode ser uma difusão de conhecimentos (…) garantida mais facilmente por outros meios. (…). O docente torna-se um animador da inteligência coletiva dos grupos de que se encarrega.” (Lévy, 2000, p. 184).

 Para concluir, quero sublinhar que para Lévy a cibercultura é a grande herdeira das ideias iluministas, na sua crença otimista do progresso e da felicidade dos povos (ele confessa-se um otimista e um amante da Humanidade) ancorada na promoção de um ideário educador e de difusão do conhecimento para todos, construído por todos, onde as comunidades virtuais participam e compartilham as suas inteligências individuais exaltando a formação da inteligência coletiva. A cibercultura transporta em si a noção de universalidade sem totalidade. Universal por ambicionar ligar todos os seres humanos numa inteligência coletiva sem impor uma unidade. (ver Lévy, 2000, p. 274).

 Referências Bibliográficas

Lévy, Pierre (2000). Cibercultura. Instituto Piaget.

Lévy, Pierre (2001). Filosofia World: o mercado, o ciberespaço, a consciência. Instituto Piaget.

Lévy, Pierre (nd). Inteligência coletiva na prática. Fronteiras do Pensamento. https://www.fronteiras.com/videos/inteligencia-coletiva-na-pratica

Lévy, Pierre (nd). O que é o virtual? Fronteiras do Pensamento. https://www.fronteiras.com/videos/o-que-e-o-virtual

Lévy, Pierre (nd). A Internet não é exatamente o que você pensa. Fronteiras do Pensamento. https://www.fronteiras.com/videos/a-internet-nao-e-exatamente-o-que-voce-pensa

Lévy, Pierre (nd). Inteligência coletiva na prática. Fronteiras do Pensamento. https://www.fronteiras.com/videos/inteligencia-coletiva-na-pratica

Cibernética. In Wikipédia, a enciclopédia livre [Em linha]. Flórida: Wikimedia Foundation, 2020, rev. 4 Julho 2020. [Consult. 17 nov. 2020]. Disponível em WWW:<https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Cibern%C3%A9tica&oldid=58680253>.

Cultura in Dicionário infopédia da Língua Portuguesa [em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2020. [consult. 2020-11-17 18:44:16]. Disponível na Internet: https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/cultura.

 

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