Virtualização das relações sociais: autenticidade e transparência

 Autenticidade: 1. carácter do ato ou documento que está conforme à lei 2. qualidade de uma obra que comprovadamente pertence ao autor a que é atribuída 3. qualidade do que é conforme à  verdade; veracidade 4. manifestação de sinceridade ou naturalidade

Transparência: 1.qualidade ou estado do que é transparente 2.fenómeno pelo qual os raios luminosos visíveis são observados através de certas substâncias 3. qualidade do que transmite a verdade sem a adulterar; limpidez 4. qualidade de quem não tem nada a esconder 5. carácter do que não é fraudulento e pode vir a público (em matéria económica) 6. folha de plástico transparente, com texto ou gravuras, para uso no retroprojetor; acetato.

De que falamos quando usamos a palavra autenticidade? O que é ser autêntico? É um retrato da imagem que vemos refletida ao espelho ou que os nossos olhos contemplam? É um procedimento, acontecimento real porque aconteceu exatamente daquela forma e podemos comprová-lo através de métodos experimentais, de fontes objetivas ou, pelo menos, credíveis e com uma certa dose de objetividade? É autêntico o que se consegue demonstrar como tal? O vocábulo transparente é um reforço da noção de autenticidade?

Quando ligamos os dois vocábulos, autenticidade e transparência, ao mundo virtual estaremos a dar-lhes os mesmos atributos de quando os usamos no mundo, digamos físico?

 Ato um – À volta de uma imagem com 2000 anos de História

Entre os séculos I e II, o Império Romano atingiu a sua máxima extensão: 5 milhões de km2, conquistados aos povos entre os rios Reno e Danúbio, na Europa, o rio Eufrates, na Ásia, e o deserto do Saara, no norte de África. Do seu primeiro imperador, Octávio César Augusto, foi forjada uma imagem (imagem 1), baseada nos ideais gregos de perfeição, beleza e serenidade, a que se associou a monumentalidade, coragem, determinação e força dos romanos. A imagem destinava-se a ser colocada em sítios públicos, em jeito de propaganda do seu poder. Para ser visto e reconhecido. Para que se fomentasse uma relação entre o povo romano e o seu imperador. Seria esta a sua identidade? Seria autêntico? Seria verdadeiramente assim?

Imagem 1 - Augusto de Prima Porta, século I, mármore, https://bit.ly/3pbNRYZ

 


Imagem 2 -  Dorífero de Policleto, século V a.C., cópia do século I, mármore, https://bit.ly/3gYLO7F

Ao compararmos as duas esculturas (imagens 1 e 2) podemos observar as semelhanças e questionamos a autenticidade da imagem criada em Augusto de Prima Porta. Enquanto obra de arte é autêntica mas procura uma representação idealizada do imperador destinada à construção de uma imagem a venerar pelo povo. Manipulação da verdade? Criação de uma outra autenticidade?

O nosso olhar para o mármore branco da escultura evita, ou ignora, o seu real tratamento colorido, que podemos observar numa réplica portuguesa (imagem 3). O desaparecimento da tinta das esculturas conjugada com a força mediática dos filmes dos anos 50/60 da indústria de Hollywood sobre o Império Romano criou uma outra verdade, uma nova autenticidade.


Imagem 3 - Réplica de estátua em Braga, https://bit.ly/3muIxOp

Qual é a verdade que fica? Qual é a imagem autêntica de Octávio César Augusto?

Para o romano contemporâneo de Octávio, a escultura de Augusto da Prima Porta é verdadeira e autêntica devido à confiança que depositavam em quem a havia colocado e à transparência do discurso protagonizado pela obra de arte.

 Ato dois

Cena 1 – Como o virtual ocupa o lugar do real

Estamos em 2020, quase a terminar um ano que trouxe o confinamento e um acelerar da virtualização das relações sociais. Refugiados em casa, evitando ao máximo os contactos físicos, os seres humanos recorreram como nunca à utilização das redes sociais para trabalhar, partilhar e recolher informação, comunicar, estar com amigos. A internet entrou no quotidiano mesmo daqueles que resistiam a usá-la. Recordo as palavras de Virilio e questiono se estaremos a entrar no tempo que futurística e criticamente anunciou:

“ (…) A dimensão do acidente mudou (…) Todos os objetos técnicos, quaisquer que eles sejam inauguravam acidentes específicos, locais e situados no tempo e no espaço. O Titanic afundou-se num local, o comboio descarrilou num outro. Mas nós criámos através da interactividade, as redes e a mundialização que provoca a revolução das transmissões, a possibilidade de um acidente, já não particular, mas geral. Prepara-se assim um acidente que ocorrerá por todo o lado ao mesmo tempo! (…) A interactividade está para a sociedade como a radioactividade para a matéria. (…) Estamos perante a emergência do acidente dos acidentes”. (Virilio, 2000, p. 96).

Neste caminhar para o acidente dos acidentes, ou o grande acidente “(…) a colonização do real (e consequente desqualificação do mesmo) pelo virtual já está em curso” (Meneses, 2008, p. 82), bem como o advento da invasão biotecnológica do corpo – transumanismo, ou a Hiroxima celular viriliana.

 Fiquemos um pouco mais com Virilio:

 “Um vestíbulo é um espaço semiprivado, semipúblico. Alguém bate, e deixa-se entrar ou não. É pois um espaço de transição quase virtual ao lado da sala de jantar, que é um compartimento quente onde se recebem as pessoas. Com o fato de dados e o visiocapacete, instala-se uma espécie de vestíbulo virtual que se chama fachada virtual. Se dois indivíduos estiverem equipados com este material podem encontrar-se à distância por transmissão eletromagnética. Concretamente, a fachada toca, alguém telechega, deve vestir-se com o seu fato de dados e entrar para esta câmara de chamada para ver, ouvir, tocar, o seu visitante, tudo isto por clone interposto. Ele, evidentemente, terá as mesmas sensações. É uma espécie de teletransporte ao domicílio. A domótica, a imótica – imóvel domotizado – levam, não só ao desaparecimento da cidade, mas ao desaparecimento da arquitetura como elemento estruturante da relação com o outro. A chegada deste clone nada tem a ver com a chegada de uma mulher ou de um homem à sua casa. Além do mais pode fazê-lo desaparecer.” (Virilio, 2000, p. 72, 73).

 Estaremos a caminhar para este acidente viriliano?

 Cena 2 – Quem somos virtualmente falando?

Tal como a imagem forjada de Octávio, cada um de nós, cada persona cria o seu perfil na rede, a sua identidade digital enquanto representação dos seus dados. Somos na rede o resultado de uma multiplicidade de eus, de acordo com o que procuramos, fazemos e queremos ser/estar. Podemos apresentar várias identidades digitais (ID) do mesmo eu, consoante o local onde estamos: há redes vocacionadas para oferta de emprego, como o linkedIn, outras sociais, como o Instagram, ou mesmo os chat ou fórum da plataforma moodle ou de um blog de um curso universitário, entre tantas outras para fins diversos. Temos várias identidades digitais que se complementam, tal como temos os nossos vários Eus que se metamorfoseiam de acordo com a formalidade dos espaços e locais físicos que frequentamos. A ID é assim complexa e uma representação virtual no seio da cibercultura.

A minha identidade digital é autêntica se for transparente (Teixeira, 2010).

Será?

Quais as razões que conduzem à criação de nicknames e de perfis falsos? Prolongamentos ou fragmentações de outros Eus? Ameaçar a privacidade de outros? Mesmo que queiramos renunciar à rede, uma parte da nossa identidade está lá, sob forma de um concurso público em que participámos, por exemplo. Assim, a identidade digital deve ser gerida com responsabilidade social e ética. Os espaços que a ID habita, redes sociais, blogues, plataformas, entre outros, devem ser fruto de um ato reflexivo. 

Quem somos na rede deve fazer parte da literacia digital. Quem ensina deve ter competências digitais.

 “Os nativos digitais já não distinguem o analógico do digital (…). Ainda que pretendamos ter uma identidade digital distinta da analógica, existe um continuum que não deve ser desvalorizado. Afinal, tudo o que é publicado na Internet lá permanece para a posteridade, salientando a dimensão atemporal da Internet. Até que ponto temos cuidado com os nossos comentários e desabafos nas redes sociais ou nos portais noticiosos? Teremos consciência de que a Internet “não esquece”, como afirma Castañeda?” (Lagoa, 2016, p.59).

A sociedade em rede é o presente das relações sociais. Vivemos um tempo em que as relações sociais são físicas e virtuais, em simultâneo. Ainda não chegámos ao acidente dos acidentes(?).

Somos muitos eus virtuais...

 Cena 3 – Mas como aferir a autenticidade e transparência na rede?

“A rede é um mundo construído pelo discurso possível, por tudo o que pode ser dito sobre tudo e por todos. Nesse mundo, será verdadeiro o que é autêntico. Tal é determinado não pela transparência em relação à fonte autoral, mas pela confiança gerada pela transparência de modo como o discurso é con-validado pela comunidade-em-rede.” (Teixeira, 2010).

Confiança, um vocábulo para triangular com autenticidade e transparência.

Na sociedade em rede, em quem confio perante os avanços das fake news?

Na sociedade em rede, como posso garantir a inexistência de plágio, por exemplo, num trabalho científico? Como posso combater a fraude? Posso confiar naquele artigo que foi publicado no site X?

Na sociedade em rede, consigo certificar-me que aquela identidade digital não foi roubada ou manipulada? Posso confiar naquela pessoa da rede?

Duvidar da credibilidade de uma notícia, da autenticidade de um trabalho ou da identidade de uma pessoa não são novidade. Agora, simplesmente, foram ampliadas pela dimensão da globalização e pela (ainda) suspeita face ao não físico, ao não palpável, ou seja o receio do virtual.

As notícias falsas sempre existiram! Nunca como agora se procurou tanto provar as notícias através de fontes credíveis. A qualidade da informação pode ser fornecida pela via da credibilidade da instituição onde está alojada, pelos comentários dos utilizadores (opinião pública), pela revisão dos pares (crítica). O ciberespaço tem mostrado que encontra formas de se organizar. O reforço da educação / literacia digital deverá ser outro caminho para a autenticidade e transparência.

O plágio e a fraude não nasceram com a rede. Pelo contrário, nunca foi tão fácil como agora aferir a autenticidade de produções científicas através de múltiplas ferramentas de verificação da sua originalidade. E muitas gratuitas! A ética no meio escolar e académico nunca foi tão discutida, sobretudo agora em tempo de confinamento quando se assistiu ao desmoronamento de um sistema de avaliação centrado na produção escrita presencial.

 Ato três – O que nos podem dizer os seres digitais?

Um inquérito (informal) realizado para este trabalho através do Google Forms e disponibilizado  no meu mural do Facebook para quem quisesse responder, é fechado agora. Recebo 84 respondentes, 79% femininos e 21% masculinos, dos 15 aos 30 anos, situando-se a maior fatia, 44%, no grupo com mais de 25 anos.


Todos têm conta em mais de uma rede social: 95% no Facebook, 88% no Whatsapp e 87% no Instagram:

Mas a seleção das 3 redes que mais usam altera a priorização, 
Como alguns estudos têm vindo a mostrar (ver Lagoa, 2016) as redes sociais são um prolongamento das relações estabelecidas fisicamente, 92% usa-as para falar com amigos físicos...

Sendo essa mesmo a principal finalidade com que as usa...
98% afirmou não assumir um perfil falso nas redes sociais. Quem o faz (2) pretende que ninguém saiba quem é.
Sobre a simultaneidade da dimensão real e virtual no mesmo espaço-tempo...


Somos seres digitais e físicos, em simultâneo.

Ato final – em aberto

Há 2000 anos foi criada uma imagem de um imperador. Essa imagem tornou-se autêntica ao ser reconhecida e aceite pelas pessoas que confiaram no poder de quem a criou, replicou e colocou em sítios públicos. Aquela era a identidade visual em mármore de um imperador que estabelecia relações com o outro.

2020. Criamos uma ou várias identidades digitais que difundimos em écrãs luminosos. Virtualizamos a nossa vida física e

“(…) vê-se despontar igualmente na órbita das redes digitais interactivas toda a espécie de novas formas…

- de isolamento e sobrecarga cognitiva (…)

- de dependência (…);

- de dominação (…);

- de exploração (…);

- e mesmo de idiotice coletiva (boatos, conformismo da rede ou das comunidades virtuais, empilhamento de dados vazios de informação, «televisão interactiva».” (Lévy, 2000, p.31).

Tal como uma estátua de mármore, a "(...) virtualização é a dinâmica através da qual compartilhamos uma realidade. Longe de circunscrever o reino da mentira, o virtual é precisamente o modo de existência de que surgem tanto a verdade como a mentira”.(Cf. Lévy, 1997).

A virtualização é o movimento pelo qual se constituiu 

e continua a se criar a nossa espécie.” (Cf. Lévy, 1997).

 

Referências bibliográficas

Lagoa, M. (2016). Autenticidade na rede: estudo da identidade digital. Tese de Mestrado. Lisboa. Universidade Aberta. digital. In https://repositorioaberto.uab.pt/bitstream/10400.2/5574/1/TMPEL_AntonioLagoa.pdf

Lévy, P. (1997). O que é o virtual? 

http://www.mom.arq.ufmg.br/mom/02_arq_interface/6a_aula/o_que_e_o_virtual_-_levy.pdf

Lévy, P. (2000). Cibercultura. Instituto Piaget.

Meneses, M. (2008). Velocidade, acidente e memória. http://z3950.crb.ucp.pt/Biblioteca/GestaoDesenv/GD15_16/gestaodesenvolvimento15_16_69.pdf

Patino, B (2019). A Civilização do peixe-vermelho – como peixes-vermelhos presos aos ecrãs dos nossos smartphones. Gradiva.

Teixeira, A. (2010). Autenticidade e transparência na rede – reinventando o debate sobre o outro que eu também sou. https://pt2.slideshare.net/MPeL/my-m-pelantonioteixeira

Virilio, Paul (2000).Cibermundo: A Política do Pior. Teorema.

autenticidade in Dicionário infopédia da Língua Portuguesa [em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2020. [consult. 2020-12-18 20:50:32]. Disponível na Internet: https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/autenticidade


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